domingo, 12 de agosto de 2018

Como outrora


Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2018/08/como-outrora.shtml


Secretário de Defesa dos EUA vem acelerar acordos de ajuda militar na região



12.ago.2018 às 2h00



A regressão se dá em mais vias do que vemos na política e em outras paisagens do dia a dia brasileiro. Uma das vias não observadas tem hoje um dia marcante, com a chegada do secretário de Defesa dos Estados Unidos ao Brasil, sua parada inicial na América do Sul. O general James Mattis vem acelerar o empenho americano de restabelecer os acordos "de cooperação militar" com países da região.



O Acordo Militar Brasil-Estados Unidos foi extinto pelo governo Geisel, em represália a atitudes do governo Jimmy Carter contra as práticas de violência da ditadura. Em parte, Geisel aproveitava a ocasião para encerrar uma presença de militares americanos que começava a ser perigosa para o regime. Os militares da "missão militar americana" estavam nas principais unidades do Exército, para uma assistência que nunca se limitou a questões técnicas.



Os assistentes do acordo tiveram papel importante, de fato, como doutrinadores políticos. Desde seus primeiros anos nos quartéis brasileiros, colaboraram para reverter o nacionalismo difundido entre os militares a partir da "batalha do petróleo", nos primeiros anos 1950, com a decorrente criação da Petrobras.



Na mesma trilha, sua encoberta doutrinação contribuiu para a formação, nas casernas, do movimento contra Getúlio e seu desenvolvimentismo. A abundância atual de documentos oficiais americanos reduz ao ridículo os que negavam a ação de americanos no preparo e na execução do golpe de 1964.



Por diferentes motivos, os acordos "de cooperação" se extinguiram na América Latina, passada a série de golpes. A degradação e depois o fim da União Soviética relaxaram a vigilância ativa dos Estados Unidos na região. Até verem, já atrasados, que a China se reinventou mais uma vez.



Com Lula, o governo Obama tanto propôs a reassociação como a encerrou em um curto-circuito inexplicado. Com Dilma, vigente ainda o mal-estar, o governo Obama foi desmascarado em escutas clandestinas das comunicações da presidente, espionagem cuja motivação também não foi esclarecida. Com Temer, as portas se abriram.



Os americanos querem o controle da base de lançamento de foguetes em Alcântara, Maranhão. As conversas a respeito, entre os dois governos, estão adiantadas. O mesmo a respeito de maior oferta do pré-sal a empresas privadas. Além disso, o governo Temer estuda a derrubada das restrições à venda, pela Petrobras, de parte das suas áreas no pré-sal.



A cessão da Embraer à entrada dominante da Boeing, empresa sob influência da Secretaria da Defesa, é outro item da reaproximação em andamento. E, com a vinda do general Mattis, iniciam-se os entendimentos para um plano de segurança regional, aproveitando a oportunidade implícita nos atuais governantes de Brasil, Argentina, Colômbia e Chile, países a receberem o secretário.



O Equador de Lenín Moreno, eleito pela esquerda e presidente de direita, já fez com o governo Trump o acordo formulado pelo Pentágono, para reativar a "cooperação militar" prevista no plano de segurança.



Contra que ameaças aos países procurados, isso os militares sul-americanos vão aprender nos cursos em bases americanas, como outrora era feito na "Escola das Américas" no Panamá, e na "assistência técnica" em seus próprios quartéis, também como outrora.



Janio de Freitas

Jornalista e membro do Conselho Editorial da Folha.

General Mourão, vice de Bolsonaro, mostra ignorância sobre índios e africanos


Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldojoselopes/2018/08/general-mourao-vice-de-bolsonaro-mostra-ignorancia-sobre-indios-e-africanos.shtml


Militar da reserva relacionou os amplos grupos étnicos à indolência e malandragem



12.ago.2018 às 2h00



O general da reserva Antonio Hamilton Mourão (PRTB) iniciou sua campanha de candidato a vice-presidente da República fazendo um diagnóstico das mazelas hereditárias do Brasil que parece ter sido copiado de algum manual de sociologia dos anos 1930.



“Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena”, pontificou ele em uma visita ao município de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, ressaltando as próprias origens ameríndias —“Meu pai é amazonense”.



Completou o raciocínio dizendo que “a malandragem é oriunda do africano”.



Quando fiquei sabendo da fala de Mourão, um texto curioso, escrito em 1723 por outro sujeito chamado Antonio (Pires de Campos, no caso), veio-me à cabeça. Ei-lo:



“Vivem de suas lavouras, no que são incansáveis, e as lavouras em que mais se fundam são mandiocas, algum milho e feijão, batatas, muitos ananases, e singulares em admirável ordem plantados (…) muito asseados e perfeitos em tudo que até as suas estradas fazem muito direitas e largas, e as conservam tão limpas e consertadas que se lhe não achará nem uma folha.”



Essa cena de produtividade e asseio quase germânicos não foi vista na Baviera, mas...entre índios da fronteira sul da Amazônia, em Mato Grosso, no lugar que Pires de Campos apelidava de “Reino dos Parecis”.



Cadê a indolência?



A arqueologia, aliás, tem mostrado que essa cena pode ter sido a regra, e não a exceção, antes que o futuro Brasil fosse conquistado pelos lusos.



A atual Rondônia, por exemplo, tem se revelado um dos principais berços da agricultura nas Américas (o cultivo de plantas pode ter começado ali há uns 9.000 anos).



Outros povos construíram os grandes monumentos funerários conhecidos como sambaquis no litoral; e grandes aldeias fortificadas, com densas redes de estradas, cortavam regiões amazônicas hoje consideradas “virgens”. 



Falemos, então, da malandragem africana. Seria a malandragem que levou guerreiros negros do atual Sudão a conquistar todo o orgulhoso Egito dos faraós por volta de 700 a.C.?



Ou foi graças à malemolência que o povo shona, na Idade Média, construiu a poderosa cidade de pedra do Grande Zimbábue, com tamanho e complexidade que nada deviam às maiores cidades europeias medievais?



Tudo isso, é claro, para não mencionarmos outra questão crucial: de quais índios ele está falando? (Ainda sobraram 150 línguas indígenas no Brasil, mais diferentes entre si do que o árabe difere do chinês.)



De quais africanos? (Há mais de mil línguas na África moderna.) Do ponto de vista cultural, é tudo a mesma coisa? (Não, nem de longe.)



Para ser justo com o general, ele argumentou ainda que “a herança do privilégio é uma herança ibérica”, e isso logo no começo de sua fala. Em outras palavras, a culpa também seria dos portugueses folgados que pariram nossa nação.



Ocorre, porém, que culturas humanas têm uma plasticidade admirável —do contrário, dinamarqueses e noruegueses ainda estariam enforcando criminosos em honra de Odin e saqueando monastérios na Irlanda, enquanto Portugal e Espanha não teriam conseguido entrar (meio claudicantes, é verdade) no rol das nações desenvolvidas.



Mudanças culturais como essas acontecem com base em incentivos e oportunidades.



Em vez de papagaiar essencialismo étnico, o general e seu mítico companheiro de chapa poderiam gastar um pouco mais de tempo pensando em como fomentar esses fatores de mudança.



Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".