Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldojoselopes/2018/08/general-mourao-vice-de-bolsonaro-mostra-ignorancia-sobre-indios-e-africanos.shtml
Militar da reserva relacionou os amplos grupos étnicos à
indolência e malandragem
12.ago.2018 às 2h00
O general da reserva Antonio Hamilton Mourão (PRTB) iniciou
sua campanha de candidato a vice-presidente da República fazendo um diagnóstico
das mazelas hereditárias do Brasil que parece ter sido copiado de algum manual
de sociologia dos anos 1930.
“Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura
indígena”, pontificou ele em uma visita ao município de Caxias do Sul, no Rio
Grande do Sul, ressaltando as próprias origens ameríndias —“Meu pai é
amazonense”.
Completou o raciocínio dizendo que “a malandragem é oriunda
do africano”.
Quando fiquei sabendo da fala de Mourão, um texto curioso,
escrito em 1723 por outro sujeito chamado Antonio (Pires de Campos, no caso),
veio-me à cabeça. Ei-lo:
“Vivem de suas lavouras, no que são incansáveis, e as
lavouras em que mais se fundam são mandiocas, algum milho e feijão, batatas,
muitos ananases, e singulares em admirável ordem plantados (…) muito asseados e
perfeitos em tudo que até as suas estradas fazem muito direitas e largas, e as
conservam tão limpas e consertadas que se lhe não achará nem uma folha.”
Essa cena de produtividade e asseio quase germânicos não foi
vista na Baviera, mas...entre índios da fronteira sul da Amazônia, em Mato
Grosso, no lugar que Pires de Campos apelidava de “Reino dos Parecis”.
Cadê a indolência?
A arqueologia, aliás, tem mostrado que essa cena pode ter
sido a regra, e não a exceção, antes que o futuro Brasil fosse conquistado
pelos lusos.
A atual Rondônia, por exemplo, tem se revelado um dos
principais berços da agricultura nas Américas (o cultivo de plantas pode ter
começado ali há uns 9.000 anos).
Outros povos construíram os grandes monumentos funerários
conhecidos como sambaquis no litoral; e grandes aldeias fortificadas, com
densas redes de estradas, cortavam regiões amazônicas hoje consideradas
“virgens”.
Falemos, então, da malandragem africana. Seria a malandragem
que levou guerreiros negros do atual Sudão a conquistar todo o orgulhoso Egito
dos faraós por volta de 700 a.C.?
Ou foi graças à malemolência que o povo shona, na Idade
Média, construiu a poderosa cidade de pedra do Grande Zimbábue, com tamanho e
complexidade que nada deviam às maiores cidades europeias medievais?
Tudo isso, é claro, para não mencionarmos outra questão
crucial: de quais índios ele está falando? (Ainda sobraram 150 línguas
indígenas no Brasil, mais diferentes entre si do que o árabe difere do chinês.)
De quais africanos? (Há mais de mil línguas na África
moderna.) Do ponto de vista cultural, é tudo a mesma coisa? (Não, nem de
longe.)
Para ser justo com o general, ele argumentou ainda que “a
herança do privilégio é uma herança ibérica”, e isso logo no começo de sua
fala. Em outras palavras, a culpa também seria dos portugueses folgados que
pariram nossa nação.
Ocorre, porém, que culturas humanas têm uma plasticidade
admirável —do contrário, dinamarqueses e noruegueses ainda estariam enforcando
criminosos em honra de Odin e saqueando monastérios na Irlanda, enquanto
Portugal e Espanha não teriam conseguido entrar (meio claudicantes, é verdade)
no rol das nações desenvolvidas.
Mudanças culturais como essas acontecem com base em
incentivos e oportunidades.
Em vez de papagaiar essencialismo étnico, o general e seu
mítico companheiro de chapa poderiam gastar um pouco mais de tempo pensando em
como fomentar esses fatores de mudança.
Reinaldo José Lopes
Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de
"1499: O Brasil Antes de Cabral".
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