sábado, 20 de maio de 2017

Por que o mundo enfrenta sua pior crise humanitária desde 1945?

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/03/1866958-por-que-o-mundo-enfrenta-sua-pior-crise-humanitaria-desde-1945.shtml

DAVID PILLING
DO "FINANCIAL TIMES"

16/03/2017  07h00

A ONU alertou que o planeta está enfrentando sua pior crise humanitária desde que a organização foi fundada, em 1945. Segundo as Nações Unidas, 20 milhões de pessoas enfrentam "níveis devastadores de insegurança alimentar", no Iêmen, Sudão do Sul, Somália e nordeste da Nigéria.

"Sem esforços mundiais coletivos e coordenados, pessoas simplesmente morrerão de fome", disse Stephen O'Brien, o chefe de operações humanitárias das Nações Unidas, ao Conselho de Segurança da organização, na sexta-feira. "Muito mais pessoas sofrerão e morrerão por causa de doenças".

As agências assistenciais vêm alertando há meses, e no caso da Somália, há anos, de que uma catástrofe está iminente. Mas a situação se deteriorou rapidamente nos últimos 12 meses.

No mês passado, a ONU e o governo do Sudão do Sul declararam estado de fome em algumas regiões do país. A ONU diz necessitar de US$ 5,4 bilhões para enfrentar a crise, mas dispõe de apenas uma fração ínfima dessa quantia para emprego imediato.

Eis uma lista das causas de escassez de alimentos, e das medidas que estão sendo tomadas para combatê-la:

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Essas crises são causadas por ações humanas?
A resposta resumida é sim, ainda que em graus variáveis. A Somália é a exceção.

Desde que o Sudão do Sul, o mais novo país do planeta, se tornou independente, em 2011, as disputas internas são constantes. O governo do presidente Salva Kiir e seu principal rival, e antigo vice, Riek Machar não conseguiram resolver as diferenças étnicas profundamente enraizadas e nem sua disputa pelo poder, e o país decaiu à guerra civil.

As agências assistenciais afirmam que, em algumas das regiões mais prejudicadas, numerosas facções armadas estão disputando o território. Os civis fugiram de suas terras, exacerbando uma crise de alimentação já aguda. Cerca de 100 mil dessas pessoas estão passando fome e a ONU alertou que outros 5,5 milhões de pessoas, ou 40% da população do país, estão em risco.

O nordeste da Nigéria é o foco da militância da organização extremista Boko Haram. Nos últimos 12 meses, o governo fez avanços em sua campanha militar contra ela, mas centenas de milhares de pessoas se viram forçadas a deixar suas casas ou estão imobilizadas em áreas sob o controle do Boko Haram.

O Programa Mundial de Alimentos da ONU afirma que há famílias individuais passando fome, mas que essa situação ainda não se generalizou o bastante para que uma situação de fome seja declarada oficialmente na área.

O conflito no Iêmen, que já dura dois anos, levou o mais pobre dos Estados árabes a uma crise humanitária e deixou milhões de pessoas à beira da fome. A guerra vem sendo agravada pela disputa entre Arábia Saudita e Irã, duas potências regionais rivais.

Os sauditas criaram uma coalizão militar sob liderança sunita, dois anos atrás, para combater os rebeldes houthis apoiados pelo Irã, que derrubaram o governo. Mais de 10 mil civis morreram. Cerca de sete milhões de pessoas enfrentam severa escassez de alimentos. Os sauditas estão bloqueando os portos iemenitas, ostensivamente para impedir o ingresso de armas, mas isso também afeta a importação de comida.

E a Somália?
A Somália é diferente porque a principal razão para a fome no país é uma seca, descrita por estudiosos de questões agrícolas como a pior da última geração. As temperaturas vêm subindo no Chifre da África, e os padrões climáticos se tornaram menos previsíveis, fenômeno que alguns atribuem ao aquecimento global.

A falta de um governo efetivo e a insurgência do movimento Al Shabaab, um grupo radical islâmico vinculado à rede terrorista Al Qaeda, não ajudaram mas não são a causa principal da fome cada vez mais grave.

Kevin Watkins, presidente da organização assistencial Save the Children, recentemente visitou Puntlândia, no nordeste da Somália, e descreveu a situação da região como "à beira do precipício".

Carcaças de animais mortos se espalhavam pela área. Em 2011, a estimativa é que 260 mil pessoas tenham morrido de fome no país, de acordo com um relatório da ONU e da Fews Net, uma organização de alerta antecipado quanto a ondas de fome.

O relatório critica a comunidade internacional por ter demorado demais a agir. Watkins disse que isso não se repetirá em 2017. Mas poderia acontecer.

Qual é a definição para uma onda de fome?
As agências da ONU e as organizações assistenciais aderem a uma definição estrita de fome, classificando-a em uma escala internacionalmente reconhecida que vai de um, ou seja, uma situação alimentícia normal, a cinco, que significa fome generalizada.

Um alerta de fome é declarado quando pelo menos 20% dos domicílios de uma região enfrentam completa falta de alimentos, o nível de subnutrição aguda supera os 30% da população, e mais de duas em cada 10 mil pessoas morrem por dia.

Os doadores estão esgotados?
A crise de refugiados deflagrada pela guerra na Síria atraiu boa parte da atenção e das verbas de assistência internacional. Nos países ocidentais, o apetite por assistência internacional se reduziu, em diversas camadas da população.

Mas Challiss McDonough, porta-voz regional do Programa Mundial de Alimentação da ONU, diz que "esgotamento não é a palavra certa".

Falando sobre Juba, a capital do Sudão do Sul, ela acrescentou que "é mais como se o sistema de assistência humanitária estivesse sobrecarregado ao ponto da paralisia. Há 20 milhões de pessoas expostas à fome. Um ano atrás, eu teria classificado uma situação assim como inimaginável".

Os países estão condenados a repetir essas catástrofes ano após ano?
Não. A Etiópia é um país muitas vezes associado à fome em larga escala por causa da onda de fome de 1983-1985, na qual pelo menos 400 mil pessoas morreram (e algumas estimativas elevam esse total a um milhão de mortos).

De lá para cá, porém, um novo governo —autoritário e repressivo, mas com uma forte agenda de desenvolvimento— tomou medidas sérias para impedir que uma fome em grande escala voltasse a acontecer.

No ano passado, a Etiópia sofreu sua pior seca em pelo menos três décadas. Algumas pessoas certamente passaram fome, mas o país montou uma resposta coordenada, que foi facilitada pela grande melhora na infraestrutura, por anos de crescimento econômico rápido, e por planejamento prudente.

Um estudo da Fundação Mundial pela Paz demonstra que entre 1870 e 1980, 115 milhões de pessoas morreram de fome —90% das quais como resultado de guerras, conquistas e repressão.

Os números caíram, depois disso. Mas se Estados entrarem em colapso e governos ou extremistas colocarem seus objetivos acima da segurança alimentar do povo, a fome em massa ainda pode atacar.

Tradução de PAULO MIGLIACCI.

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