MCDONALD DZIRUTWE
JOE BROCKED CROPLEY
DA REUTERS
27/11/2017 13h12
Dentro da residência presidencial em Harare, Robert Mugabe
estava na situação mais difícil de seus 37 anos no poder. Havia tanques nas
ruas, e tropas tinham ocupado a emissora de televisão estatal, de onde o
Exército anunciara que havia tomado controle do Zimbábue.
Com 93 anos de idade, mas ainda alerta, Mugabe resistia. O
único líder que o Zimbábue conhecera desde sua independência se negava a deixar
o poder.
Numa reunião tensa com o alto escalão militar, em 16 de
novembro, o chefe de Estado mais velho do mundo ordenou ao comandante militar
Constantino Chiwenga: "Traga-me a Constituição e me diga o que ela
diz", segundo duas pessoas presentes. Um assessor trouxe uma cópia da
Constituição, que declara que o presidente é o comandante-chefe das forças
armadas.
Chiwenga hesitou antes de responder que o país estava diante
de uma crise nacional que exigia uma intervenção militar. Mugabe, segundo os
presentes, retorquiu que o problema era o Exército. Então o presidente
pressionado indicou que talvez fosse possível encontrarem uma solução juntos.
A reunião marcou o início de cinco dias de impasse
extraordinário entre Mugabe e a lei suprema do Zimbábue, de um lado, e, do
outro, as forças armadas, seu partido político e a população zimbabuana.
Os generais queriam Mugabe fora do poder, mas buscavam um
golpe "pacífico", que não manchasse irreparavelmente a reputação da
administração que queria assumir o poder, segundo múltiplas fontes militares e
políticas.
O presidente aceitou a derrota, finalmente, apenas depois de ter sido afastado por seu próprio partido, o Zanu-PF, e enfrentado a desonra do impeachment. Ele assinou uma carta de renúncia endereçada ao presidente do Parlamento, Jacob Mudenda, que foi lida em voz alta aos parlamentares em 21 de novembro.
Mugabe, que comandara o país desde 1980, assistindo a seu
mergulho na ruína econômica sem nada fazer enquanto sua mulher comprava artigos
de luxo, tinha caído.
O país explodiu em alegria. Parlamentares dançaram, e
dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas para festejar uma queda política
que transmitiu ondas de choque pela África e o mundo.
Uma semana apenas antes, muitos teriam visto a queda de
Mugabe como algo impensável.
A Reuters investigou os fatos que levaram ao afastamento de
Mugabe, mostrando que a ação do exército foi o momento culminante de meses de
planejamento que envolveu Harare, Johannesburgo e Pequim.
RIVALIDADE ACIRRADA
Em setembro, baseada em um manancial de documentos de
inteligência da temida CIO (Organização Central de Inteligência) do próprio
Mugabe, a Reuters divulgou que o exército apoiava o nome deEmmerson Mnangagwa,
o então vice-presidente, para suceder Mugabe quando chegasse a hora.
O informe detalhou como Mnangagwa, amigo vitalício de Mugabe
e seu ex-chefe de segurança, poderia cooperar com os adversários políticos do
presidente para reativar a economia. O documentou provocou furor nos círculos
políticos e de mídia zimbabuanos.
Uma rivalidade aguda se intensificou entre Mnangagwa e Grace, 52, mulher de Mugabe, que também esperava assumir a presidência e tinha o apoio de uma facção do Zanu-PF conhecida como G40.
No início de outubro, Mnangagwa disse que foi levado de
avião a um hospital na África do Sul depois de ser alvo de uma tentativa de
envenenamento em agosto. Ele não apontou para nenhum suspeito –mas não
precisava fazê-lo.
Grace reagiu rapidamente, negando envolvimento na tentativa
de assassinato e acusando seu rival de tentar angariar apoio. De acordo com
reportagem no jornal estatal "Herald", ela minimizou a importância de
Mnangagwa e o descreveu como nada mais que um funcionário de seu marido.
Enquanto a pressão se intensificava, Mugabe ficava cada vez
mais paranoico em relação à possível deslealdade do chefe do exército,
Constantino Chiwenga, militar de carreira e veterano condecorado da guerra
zimbabuana contra o governo de minoria branca, nos anos 1970.
Os espiões do presidente, que permeavam todas as
instituições e todos os setores da sociedade no Zimbábue, o estavam avisando
que os militares não aceitariam Grace como presidente.
"Mugabe está muito preocupado com a possibilidade de um
golpe", disse um relatório de inteligência datado de 23 de outubro.
"Figuras seniores da CIO lhe disseram abertamente que os militares não
aceitarão a nomeação de Grace de boa vontade. Ele foi avisado que deve se
preparar para uma guerra civil."
A Reuters teve acesso ao documento e a centenas de outros
relatórios de inteligência datados de a partir de 2009, anteriores ao golpe. Os
documentos vêm do interior da CIO, mas a Reuters não conseguiu determinar quem
os redigiu. A CIO é dividida em facções pró e anti-Mugabe.
No final de outubro, Mugabe convocou Chiwenga para uma
discussão cara a cara, revela outro dos documentos, datado de 30 de outubro.
Mugabe, segundo o texto, perguntou ao comandante militar sobre seus vínculos
com Mnangagwa e lhe disse que fazer oposição a Grace lhe custaria sua vida.
Segundo o relatório de inteligência, "Chiwenga foi avisado por Mugabe que é hora de ele começar a seguir [obedecer suas ordens]. Ele mencionou a Chiwenga que aqueles que combatiam sua mulher certamente teriam uma morte dolorosa."
Nesse mesmo encontro Mugabe ordenou a Chiwenga que jurasse
lealdade a Grace. Chiwenga se negou a fazê-lo. "Chiwenga se negou a ser
intimidado", diz o relatório. "Ele se conservou firme na lealdade a
Mnangagwa."
A Reuters enviou perguntas ao porta-voz de Mugabe, George
Charamba, sobre essa discussão e outros pontos deste artigo. Em mensagem
enigmática datada de 23 de novembro, Charamba respondeu: "Curta texto da
Reuters. Boa noite." Dois representantes de Chiwenga se negaram a
comentar.
Após outro encontro tenso com Mugabe em 5 de novembro, Chiwenga deixou Harare numa viagem oficial previamente organizada com destino à China, que, como a maior investidora em Zimbábue, exerce influência importante no país.
Um dia depois, Mugabe afastou Mnangagwa da vice-presidência
e o expurgou do Zanu-PF, o movimento de libertação no qual Mnangagwa serviu
desde sua juventude e pelo qual quase foi executado quando era militante jovem
e foi flagrado detonando uma bomba num trem.
Para os generais, Mugabe tinha ido longe demais. De acordo
com uma fonte militar, os militares imediatamente ativaram o alerta
"código vermelho", o nível de alerta mais alto.
COMPLÔ DE ASSASSINATO
Momentos após o afastamento de Mnangagwa, em 6 de novembro,
o esquema de segurança dedicado a ele e sua residência foi desativado, segundo
declaração que ele emitiu mais tarde. Ele foi informado que corria perigo de
vida.
"Agentes de segurança amigos me avisaram que um plano
estava sendo traçado para me prender, levar a uma delegacia de polícia e me
eliminar", disse Mnangagwa em comunicado emitido em 21 de novembro.
"Para minha própria segurança, era melhor eu deixar o país
imediatamente."
De Harare, Mnangagwa conseguiu atravessar a fronteira do
vizinho Moçambique, de onde teria embarcado num avião para a China, segundo uma
fonte familiarizada com seus movimentos. Ali, reuniu-se com Chiwenga, segundo a
fonte.
A Reuters não pôde confirmar a informação, mas um relatório
de inteligência de 13 de novembro indica que Mugabe suspeitava que alguns de
seus generais estivessem na China, preparando sua deposição.
"Vários generais já estão na China, prontos para
planejar a deposição de Mugabe com Mnangagwa", dizia o relatório. O texto
não deixou claro quais eram os generais, nem se sua viagem à China tinha sido
autorizada.
Os espiões de Mugabe suspeitavam que aliados antigos
tivessem se voltado contra o presidente envelhecido. Um relatório de
inteligência de 30 de abril dizia que Pequim e Moscou eram favoráveis a uma
mudança de regime, frustrados com a implosão econômica do Zimbábue sob Mugabe.
"China e Rússia querem mudanças", disse o
relatório. "Querem mudanças no Zanu-FP. Estão fartas da liderança de
Mugabe."
"Os dois países estão até dispostos a fornecer armas de
guerra a Mnangagwa clandestinamente para ele combater Mugabe."
Nem o Ministério da Defesa nem o Ministério do Exterior
chineses responderam a pedidos de declarações. O Ministério do Exterior tinha
dito anteriormente que a visita de Chiwenga foi "um intercâmbio militar
normal acordado previamente pela China e o Zimbábue".
A Reuters enviou por escrito pedidos de declarações ao
Kremlin, ao Ministério da Defesa e ao Ministério do Exterior russos. Nenhum
deles respondeu.
A China se interessa pelo Zimbábue há anos, tendo apoiado as
forças de Mugabe durante a luta pela libertação. Após a independência zimbuana,
criou laços com o país nas áreas de mineração, segurança e construção.
A Rússia também tem vínculos com o Zimbábue desde o início
da década de 1980, e em 2014 um consórcio russo formou uma parceria para
desenvolver um projeto de mineração de platina no país, no valor de US$ 3
bilhões.
A viagem de Chiwenga à China culminou com um encontro dele com o ministro da Defesa, Chang Wanquan, em 10 de novembro.
Duas fontes informadas sobre o que foi discutido no encontro
disseram à Reuters que Chiwenga pediu à China que concordasse em não interferir
se ele assumisse o controle do Zimbábue temporariamente para depor Mugabe.
Chang lhe assegurou que Pequim não se envolveria, e, segundo as fontes, os dois
também discutiram táticas que poderiam ser usadas durante o golpe "de
facto".
A Reuters não pôde averiguar se Mnangagwa se reuniu com
Chang.
Informado sobre as discussões na China, Mugabe convocou o
comissário de polícia, Augustine Chihuri, ainda leal a ele, e seu vice,
Innocent Matibiri, encarregando-os de prender Chiwenga quando retornasse a
Harare.
Os dois reuniram um pelotão de cem policiais e agentes de
inteligência. Mas o complô foi vazado, e partidários de Chiwenga conseguiram
reunir uma equipe de várias centenas de agentes e soldados das forças especiais
para receber seu comandante quando o avião dele se aproximava da cidade.
Segundo uma fonte de segurança, alguns deles estavam
disfarçados de carregadores, com seus uniformes militares e armas escondidos
sob macacões e coletes de alta visibilidade.
Percebendo que perdiam em número e armas para o grupo
contrário, a equipe de policiais leais a Mugabe recuou, permitindo que Chiwenga
desembarcasse sem incidente, segundo a fonte de segurança.
O porta-voz de Mugabe não comentou o incidente.
"MUITO ALARMADOS"
Dois dias depois, Chiwenga e um grupo de comandantes
militares pediram uma reunião com Mugabe em sua residência oficial em Harare,
uma mansão colonial com leopardos empalhados e espessos tapetes vermelhos.
Eles se disseram "muito alarmados" com o
afastamento de Mnangagwa e pediram a Mugabe que controlasse sua esposa e a
facção G40, leal a ela, que acusavam de tentar dividir as forças armadas. A
informação é de um funcionário governamental que estava presente na reunião.
"O que vocês acham que deve ser feito?" perguntou
Mugabe aos militares, reclinado numa poltrona.
Os generais lhe pediram garantias de que também eles não
seriam expurgados. A resposta de Mugabe foi ambígua, segundo a fonte
governamental. Chiwenga disse ao presidente que levaria a público suas
preocupações com a facção G40.
Horas depois, Chiwenga chamou repórteres ao quartel principal do exército em Harare para divulgar um comunicado.
"Precisamos recordar aos responsáveis pelas manobras e
traições que as forças armadas não vão hesitar em intervir para proteger nossa
revolução", ele disse, lendo um texto preparado.
Na tarde seguinte, a Reuters informou que seis veículos
blindados de transporte de tropas se dirigiram ao quartel-general da Guarda
Presidencial de Mugabe, na periferia de Harare. Não estava claro quem os
comandava.
A população da capital estava ansiosa, mas ainda não sabia o
que significava toda a movimentação.
O TELEFONE FICOU MUDO
Às 18h do dia 14 de novembro, o comboio de Mugabe se dirigiu
à sua residência particular, conhecida como "Blue Roof", no subúrbio
de Borrowdale.
Enquanto isso, as redes sociais fervilhavam com imagens de
veículos blindados percorrendo as estradas em direção a Harare e especulações
sobre um possível golpe.
Cada vez mais preocupada, pouco após as 19h Grace telefonou
a um ministro do gabinete pedindo que o WhatsApp e o Twitter fossem fechados. A
informação é de uma fonte que teve acesso a uma gravação da conversa.
O ministro, cuja identidade a Reuters não está informando
por razões de segurança, respondeu que tal iniciativa seria da alçada do
ministro de Segurança do Estado, Kembo Mohadi.
"Ninguém vai tolerar um golpe. Isso não pode
acontecer", disse Grace, conhecida comumente como Amai ("Mãe"),
segundo uma fonte que ouviu a gravação.
A voz de Mugabe é ouvida na linha: "Como vocês ouviram
de Amai, há algo que se possa fazer?"
O ministro deu a mesma resposta, sobre as responsabilidades
da Segurança de Estado, e então o telefone ficou mudo.
Mohadi se negou a comentar o assunto.
Duas horas mais tarde, dois veículos blindados entraram na
sede em Pockets Hill da emissora Zimbabwe Broadcasting Corporation (ZBC),
Dezenas de soldados fecharam a sede e invadiram o estúdio,
onde enfrentaram profissionais, confiscaram seus telefones e interromperam a
transmissão de programas. A ZBC, pertencente ao governo e vista amplamente como
porta-voz de Mugabe, trocou sua programação normal por vídeos de música pop.
O círculo mais próximo de Mugabe, composto quase
inteiramente por membros do G40, não fazia ideia do que estava acontecendo,
segundo quatro fontes que acompanharam suas conversas.
O ministro da Informação, Simon Khaya Moyo, ligou para o
ministro da Defesa, Sydney Sekeramayi, para perguntar se ele tinha informações
sobre um possível golpe. Sekeramayi disse que não, mas tentou averiguar com o
comandante militar Chiwenga.
Este disse que retornaria a ligação de Sekeramayi. Segundo as fontes, ele não o fez.
Moyo se encontra escondido, e não foi possível obter
declarações dele. Sekeramayi se negou a dar declarações.
ESQUEMA DE SEGURANÇA
Enquanto os ministros da facção G40 tentavam desesperadamente
descobrir o que estava acontecendo, os homens de Chiwenga cercaram a residência
de Mugabe.
Segundo uma fonte informada sobre a situação, Albert Ngulube, diretor da CIO e chefe do esquema de segurança de Mugabe, estava voltando para sua casa de carro às 21h30 depois de visitar Mugabe. Ele topou com um carro blindado na Borrowdale Brooke, uma rua lateral que conduz à casa de Mugabe.
Quando Ngulube ameaçou atirar nos soldados, eles o
espancaram e detiveram. Ngulube foi solto mais tarde, mas, segundo a fonte,
sofreu ferimentos faciais e cranianos.
Representantes de Chiwenga e Mnangagwa se negaram a dar
declarações. A Reuters não pôde contatar Ngulube.
Outros ministros do G40 também foram apreendidos por
militares. O ministro das Finanças, Ignatius Chombo, foi encontrado escondido
num banheiro de sua casa e espancado, sendo então detido em local não revelado
por mais de uma semana.
Libertado em 24 de novembro, ele foi internado num hospital
com ferimentos nas mãos, nos braços e nas costas, segundo disse à Reuters seu
advogado, que descreveu a ação do exército como "brutal e
draconiana".
Soldados detonaram com explosivos a porta da casa de
Jonathan Moyo, o cérebro do G40, segundo imagens em vídeo vistas pela Reuters.
Outros invadiram a residência do ministro do Governo Local Saviour Kasukuwere,
outro partidário crucial de Grace.
Os dois ministros conseguiram fugir para a residência de
Mugabe. Contatado pela Reuters pouco após a meia-noite de 15 de novembro,
Kasukuwere estava audivelmente estressado. "Não posso falar, estou numa
reunião", ele disse antes de desligar.
Mugabe se aferrou à presidência por mais uma semana,
enquanto Chiwenga e suas forças tentavam organizar uma saíde pacífica e quase
legal para o líder.
Mas Mugabe desistiu, finalmente, quando o Parlamento deu
início a um processo de impeachment, em 21 de novembro. Após 37 anos no
controle, período no qual boa parte do país mergulhou na pobreza, sua carta de
renúncia disse que ele se afastava "por preocupação com o bem-estar do povo
de Zimbábue".
Tradução de CLARA ALLAIN
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