Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/01/1951076-por-ordem-de-ditador-cazaquistao-troca-alfabeto-cirilico-pelo-latino.shtml
ANDREW HIGGINS
DO "NEW YORK TIMES", EM ALMATY (CAZAQUISTÃO)
17/01/2018 07h00
Em seus 26 anos como o primeiro e único mandatário do
Cazaquistão, Nursultan A. Nazarbayev vem conseguindo manter a Rússia
ressurgente à distância e orientar-se nas águas geopolíticas turvas em volta de
Moscou, Pequim e Washington, conservando boas relações com as três capitais.
Mas o líder autoritário parece ter perdido de repente seu
talento para jogar com interesses divergentes, e a razão disso é uma questão
que, à primeira vista, não envolve rivalidade entre grandes potências nem
graves questões de Estado: o papel do humilde apóstrofo na escrita de palavras
em cazaque.
Hoje a língua cazaque é escrita em uma versão modificada do
cirílico, um legado do domínio soviético. Mas em maio passado Nazarbayev
anunciou que o alfabeto russo será abandonado em favor de uma nova escrita
baseada no alfabeto latino. Segundo ele, isso "será a realização dos
sonhos de nossos ancestrais e também o caminho para o futuro das gerações mais
jovens".
Mas a decisão trouxe à tona uma questão espinhosa: como
escrever uma língua que não possui alfabeto próprio, mas sempre foi escrita com
alfabetos importados.
A intervenção ardorosa do presidente na discussão acalorada
sobre a nova escrita, além da solução que ele propôs —Nazabayev quer que sejam
usadas muitos apóstrofos— chamaram a atenção a como virtualmente tudo nesta
ex-república soviética, por mais possa ser pequeno ou obscuro, depende da
vontade de um homem de 77 anos ou, pelo menos, dos que alegam falar em seu
nome.
"Esse é o problema básico de nosso país: se o
presidente fala alguma coisa, se ele simplesmente rabisca alguma coisa num
guardanapo, todo o mundo tem que aplaudir", disse Aidos Sarym, analista
político e membro de uma comissão de reforma da língua cazaque criada no ano
passado.
Para ele, Nazarbayev merece elogios por ter transformado o
Cazaquistão no país mais estável e próspero de uma região fustigada por
turbulência política e decadência econômica. Mas a língua nacional, opinou
Sarym, "é uma questão muito delicada que não pode ser ditada por
autoridades".
IDENTIDADE
O idioma nacional é uma questão muito delicada no
Cazaquistão, como é o caso em muitos países independentes que se esforçam para
criar um senso de identidade nacional depois de terem sido subjugados por uma
potência estrangeira. Muitas pessoas no país, incluindo pessoas da etnia
cazaque, ainda falam russo com frequência.
Mas, desde 1991, quando emergiu das ruínas da União
Soviética como país independente, o Cazaquistão vem enxugando constantemente o
legado da hegemonia política e cultural de Moscou.
O país substituiu o russo pelo cazaque como a língua
principal da educação e do governo, colocou o inglês em pé de igualdade com o
russo no ensino de línguas estrangeiras e produziu uma enxurrada de filmes e
programas de TV falados em cazaque que festejam a cultura do país e suas
tradições nômades, há muito tempo desaparecidas.
O processo de adoção do alfabeto latino, a ser concluído em
2025, é amplamente aplaudido, visto como afirmação necessária da independência
completa da Rússia e da determinação do Cazaquistão de fazer parte do mundo
maior. As principais objeções vieram da Igreja Ortodoxa Russa, em Moscou, e de
pessoas de etnia russa que vivem no Cazaquistão.
Mas algo que vem sendo muito menos popular é a decisão
tomada pelo presidente em outubro de ignorar os conselhos de especialistas e
anunciar um sistema que utiliza apóstrofos para designar sons em cazaque que
não existem em outras línguas escritas no alfabeto latino padrão.
"República do Cazaquistão", por exemplo, será escrito,
em cazaque, "Qazaqstan Respy'bli'kasy".
Num país onde quase ninguém contesta o presidente
publicamente, Nazarbayev está vendo sua política em relação a apóstrofos ser
universalmente criticada.
Linguistas, que haviam recomendado que a nova escrita
seguisse o exemplo do turco, que utiliza o trema e outros sinais fonéticos em
lugar de apóstrofes, protestaram, dizendo que o sistema preconizado pelo
presidente seria feio e impreciso.
"Ninguém sabe de onde o presidente tirou essa ideia
péssima", disse Timur Kocaoglu, professor de relações internacionais e
estudos turcos na Universidade Michigan State que viajou ao Cazaquistão no ano
passado. "Os intelectuais cazaques estão dando risada e perguntando 'como
vai ser possível ler qualquer coisa escrita desse jeito?'."
A escrita proposta "dói nos olhos", disse
Kocaoglu.
TESTE
As queixas estão testando os limites do modo de governo de
Nazarbayev: ele não admite qualquer oposição, mas costuma estar sintonizado com
a vontade pública.
Assinalando uma possível disposição de mudar de rumo, um
aliado influente do presidente, o presidente do Senado, Kassym-Jomart Tokayev,
disse no mês passado que ainda era cedo para começar a usar apóstrofos em
jornais e outras publicações, porque ainda não tinha sido tomada uma decisão
final.
Depois de conduzir o Cazaquistão à independência,
Nazarbayev, temendo uma reação da grande população de etnia russa no país, não
atendeu imediatamente às reivindicações de nacionalistas, que queriam a
retomada rápida do alfabeto latino.
Outros países recém-independentes e com idiomas de raiz
turca, semelhantes ao cazaque, como Uzbequistão e Azerbaijão, pararam de usar o
alfabeto cirílico. Mas a população russa nesses países era muito menor.
"Todos quisemos criar nossos próprios Estados e
culturas, para escapar da União Soviética em queda", explicou Anar
Fazylzhanov, vice-diretor do Instituto de Linguística em Almaty, a capital
econômica e cultural do país. "Mas mudar o alfabeto seria politicamente
muito mais difícil no Cazaquistão."
Nas últimas duas décadas, contudo, o equilíbrio demográfico
mudou em favor dos cazaques étnicos, após a saída do país de muitos russos
étnicos, que de cerca de 40% da população no momento da independência passaram
a representar 20% hoje. Esse fato abriu o caminho para Nazarbayev endossar a
proposta de abandonar o cirílico.
"O cirílico fazia parte do projeto colonial russo.
Muitas pessoas enxergam o uso do alfabeto latino como uma iniciativa
anti-imperialista", disse o comentarista político cazaque Dossym Satpayev.
MOSCOU
A Igreja Ortodoxa Russa e nacionalistas russos protestaram
contra a iniciativa, que enxergaram como um ataque à cultura ocidental e uma
rendição ao Ocidente.
Segundo especialistas informados sobre o assunto, o
Cazaquistão chegou a receber relatórios de inteligência dizendo que o
Parlamento russo estaria preparando uma declaração louvando Nazarbayev como
grande estadista e suplicando que ele preservasse o alfabeto cirílico, para
consolidar seu legado de líder que manteve a paz entre diferentes grupos
étnicos.
A passagem para a adoção do alfabeto latino foi acelerada em
abril, quando Nazarbayev criou uma Comissão Nacional para a Modernização da
Sociedade. A comissão incluía um grupo de linguistas encarregados de estudar
como devem ser transcritos os sons do idioma cazaque.
Como a língua cazaque inclui muitos sons que não são
facilmente representados nos alfabetos cirílico ou latino sem sinais
diacríticos adicionais, era preciso decidir se seria seguido o caso do turco,
que utiliza o alfabeto latino mas emprega cedilha, til, braquia, pontos e
outros sinais para assinalar a pronúncia das palavras, ou se seriam inventados
sinais fonéticos alternativos.
Em agosto o comitê de linguistas propôs o uso de um alfabeto
que seguisse em grande medida o modelo turco. Mas o gabinete do presidente
declarou a proposta inviável porque os sinais usados no turco não existem nos
teclados de tipo padrão.
A única razão citada publicamente por Nazarbayev para
explicar por que ele não queria sinais fonéticos de estilo russo era que
"não deve haver ganchos ou pontos supérfluos que não possam ser inseridos
diretamente por um computador", segundo disse o presidente em setembro.
E ele opinou que o uso de sinais diacríticos para
transcrever sons cazaques especiais causaria confusão quando as pessoas
tentassem ler o inglês, em que as mesmas combinações de letras designam sons
inteiramente diferentes.
Mas outros enxergaram outra motivação possível: Nazarbayev
pode querer evitar qualquer sugestão de que o Cazaquistão esteja dando as
costas à Rússia e abraçando a união pan-turca, uma ideia rejeitada pelas
autoridades russas nos tempos czaristas e soviéticos.
Tradução de CLARA ALLAIN
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